sábado, 2 de janeiro de 2010

sobre ciborgues, cibernética e arte contemporânea

Este é um relatório de leitura que fiz em 28/10/2009, para a disciplina optativa de Poéticas Contemporâneas, ministrada pelo professor José Minerini. Primeiramente exponho meu entendimento sobre o texto "Homem artista, deus criador ou feiticeiro ciborgue?", da autora Suzete Venturelli e em seguida, a partir do sétimo parágrafo, ofereço uma analise crítica minha sobre os assuntos discutidos, valendo-me do repertório que obtive no decorrer de minha graduação.


“Homem artista, deus criador ou feiticeiro ciborgue?” ¹
Com as analises de Venturelli pude entender que o impacto da tecnologia computacional na vida humana está transformando sua vivência e seu pensamento de um modo tão profundo que por vezes escapa de nossa percepção. A autora inicia seu discurso pelo conceito de “sujeito”, fundamentando com princípios estudados em várias áreas do conhecimento. O sujeito, ou a subjetividade do ser humano, bem como sua inteligência, são fatores determinados pela sua capacidade de auto organizar-se a partir de sua experiência com o meio e pelo pensamento complexo que desenvolveu em sua evolução, capaz de relacionar conceitos que se opõem, a fim de chegar a uma conclusão.
São estas características da definição de sujeito que observei nas indagações de Venturelli quanto à relação do ser humano com as máquinas: se a máquina está imitando cada vez melhor o ser humano, ou se os humanos estão conseguindo inventar novos seres, novas criaturas, ou uma nova manifestação de sujeito. O mundo cibernético é regido por processos lógico-matemáticos que permitem simular virtualmente entidades inteligentes que se auto-organizam e se regeneram segundo as informações que obtêm de sua interação com o meio cibernético (ou o “espaço virtual”).
Quanto às manifestações artísticas que têm surgido na abordagem da cibernética, entendi que a arte se utiliza dos métodos científicos e das tecnologias computacionais para mostrar uma reflexão crítica das polêmicas que surgem do impacto dessas tecnologias e da evolução da ciência na vida do ser humano. Em outras palavras, trata-se do que, se antes era visto como ficção-científica, em nossos dias tem se tornando cada vez mais realidade. Daí a discussão sobre o conceito de ciborgue como algo que é refletido na realidade das relações humanas contemporâneas, sobretudo de suas modificações biotecnológicas. Nestes termos, também podemos entender que o corpo humano deixa de ser considerado, na realidade, um organismo único, imutável, dotado de emoções e sensações. Com a evolução da cibernética, surge a questão de que o homem é dependente das máquinas, de suas próprias criaturas artificiais, imagéticas ou objetos e aparelhos diversos; ou de que sujeito e objeto agora podem se unir.
Quanto à questão formal da arte cibernética, Venturelli verifica que os seres virtuais inteligentes, com a sua capacidade de se auto-organizar, de se regenerar e de se reproduzir, também conseguem produzir formas aleatórias, sempre diferentes, assim nos revelando uma forma artística de caráter aberto e emergente.
Numa visão ainda mais abrangente, Venturelli indaga se os humanos conseguiram fazer da arte consciente de sua própria autonomia. Para isso, as tecnologias cibernéticas deveriam gerar vida artificial capaz de conceber sua subjetividade; de pensar e de intuir sua própria existência. Isso ainda não é realidade, pois a vida artificial ainda está num estágio inicial de evolução, dotada apenas de pensamento inteligente, o que se opõe à reflexão da condição humana, em que o homem, desde quando nasce, concebe sua existência antes de pensar. Os recursos da cibernética ainda funcionam como extensores das atividades tanto mentais quanto corporais do homem, desenvolvidos sob os critérios principais de comunicação, de operação em meios eletrônicos informatizados e acesso a grandes quantidades de informação.
Outra análise interessante de Venturelli é ver o ciborgue como uma entidade híbrida do homem com as imagens, ou um indício dos prazeres que surgem ao estreitar a realidade vivida com as imagens fantásticas, míticas, ou com todo o mundo imaterial da cultura; prazeres estes que se originam do caráter da imagem como um “vetor de comunhão”, ao projetar nossa subjetividade para além de nós mesmos, num ambiente exterior, ou seja, o espaço cibernético que criamos para nos comunicarmos. É então nesta discussão que pude entender o conceito de “feiticeiro ciborgue” sugerido pela autora, pois este hibridismo do homem com suas próprias criações artificiais, ou com a própria cultura da imagem, vem proporcionar meios de experiências que lhe transcendem, onde o ser humano se vê em comunhão com as entidades eternizadas de sua própria produção cultural e artística, de seu imaginário, ao imergir em ambientes virtuais.
Devo aqui deixar em paralelo a minha própria visão sobre as questões da cibernética e do ciborgue. Concordo que o ciborgue deixa cada vez mais o mundo da ficção-científica, à medida que vemos pessoas introduzindo aparatos eletrônicos em seu corpo, seja para continuar a viver com órgãos sintéticos (exemplos: o coração artificial, aparelhos auditivos, membros mecânicos, ou até o aparelho injetor de insulina automático, substituindo o pâncreas deficiente dos diabéticos...) ou para aprimorar sua vivência social, profissional e suas relações econômicas, administrando quantidades de informação muito além da capacidade natural do cérebro, valendo-se então das memórias eletrônicas desenvolvidas pela indústria de hardwares. Isso não deixa de ser uma superação de vários problemas humanos, que só pôde ser alcançada com a evolução tecnológica, trazendo vantagens que antes eram apenas vislumbradas pelo imaginário.
A partir de meus estudos anteriores no próprio meio acadêmico; lendo livros relacionados a essas questões; conversando com amigos e professores, além do conhecimento que obtive nas disciplinas de Estética, História do Design e Design Contemporâneo, eu devo esclarecer que não vejo a condição ciborgue como uma evolução da espécie humana.
Certamente, é sim um exemplo evidente do que tem sido discutido sobre o ser “pós-humano”, com suas qualidades elevadas pela biotecnologia. Porém, o ciborgue em si, ou o ser pós-humano, não é uma evolução, mas sim uma ruptura com ela. A meu ver, o ser humano deve evoluir física, social e culturalmente sem contradizer sua própria natureza, sua essência...
Devemos também perscrutar as questões espirituais, que em nossos dias voltaram a ser investigadas no meio intelectual de maneira inédita. Nesta visão, podemos questionar como evoluirmos sem dependermos da nossa própria produção cultural, dos objetos, ou mesmo sem precisarmos introduzir os produtos da tecnologia em nosso corpo, subvertendo nossa pele e nossa essência.
Quanto mais dependermos de nossas criações, quanto mais nos rodearmos com a artificialidade da cultura material ou das imagens idolatráveis da indústria cultural; ou quanto mais cercearmos nossas vidas com os sistemas impostos à sociedade pelo capitalismo, pela burocracia e pelas engrenagens da indústria, mais nos distanciamos de nossa vivência concreta com o mundo natural que nos deu origem.
Isso já foi concebido no meio filosófico como a chamada “dialética interna da cultura” (FLUSSER, 2007)², observando que, apesar de a cultura ter evoluído as condições de relacionamento interpessoal, bem como a civilização humana como um todo, ela impõe obstáculos entre o homem e a realidade. A própria etimologia da palavra “objeto” pressupõe “objeção”, “obstáculo”, ou “problema”, mesmo quando desenvolvemos objetos de uso, por mais funcionais e perfeitos que possam ser. Por estes motivos, o homem se distancia da realidade natural (ou até da sobrenatural...) quanto mais se apega aos paradigmas do pensamento racional, lógico e científico, nestes se acomodando, sem observar criticamente as conseqüências.

¹ VENTURELLI, Suzete. Homem artista, deus criador ou feiticeiro ciborgue? in DOMINGUES, Diana (org.). Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 333-344.
² FLUSSER, Vilém. Mundo Codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2007,m 222 p.

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